terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Quem conta um Conto...

Lendo para criança dormir o livro "Pinóquio", caíram sobre mim vários conceitos da Psicologia Analítica, como que por encanto. É para desencantar que aqui partilho algumas considerações.

Ainda que a edição que tenho agora em mãos seja a versão da Disney, ainda assim são conservadas as características centrais da história. Vou a partir daqui resumir a história e numerá-la para facilitar a leitura psicológica a seguir.

1)Para quem não se recorda, Pinóquio é uma criação de seu pai, que o faz sozinho, esculpindo-o, mas não podendo por si lhe dar uma alma para que fosse um menino. Pinóquio por magia da Fada Azul ganha vida, mas ainda parcial, que também lhe dá um grilo falante como a sua "consciência". Pinóquio precisa fazer uma longa jornada onde há vários desafios, para que possa crescer, amadurecer e se tornar uma pessoa de verdade. O maior desafio dele é ele próprio, que busca caminhos mais fáceis e de satisfação imediata em detrimento dos caminhos mais elaborados para que se torne o que mais deseja: ser um menino de verdade.

2) Primeiro ele não vai à escola pois por vaidade é atraído por dois malfeitores para se apresentar em um teatro, acabando por ficar preso em uma gaiola. Mas não admite seu erro e mente pela primeira vez à Fada Azul, tendo o nariz crescendo por isto. Admitindo sua falha, o nariz volta ao normal e o grilo o ajuda na fuga.

3) Ao sair dali, deixa-se pegar pelos mesmos larápios, que usam apenas outro subterfúgio, oferecendo diretamente a Ilha dos Prazeres. Ignorando as súplicas do grilo, Pinóquio vai para a ilha e lá acaba novamente preso e, enfeitiçado, acaba por adquirir partes do corpo de um burro, quase deixando de ser um menino. Novamente é o grilo que lhe ajuda a sair dali.

4) Mas ao voltar para casa, descobre que Gepeto está preso em uma baleia. E para lá vai Pinóquio, para salvá-lo, pois se sente culpado de ver Gepeto nesta situação, já que a baleia o engoliu enquanto procurava pelo boneco. Pinóquio consegue entrar na baleia e, causando lhe aflição, consegue sair dela com Gepeto. Após serem cuspidos violentamente por ela, ficam todos à deriva no mar. E neste momento o grilo nada pode fazer, só observar, sentindo-se mal por não poder ajudar.

5) Pinóquio consegue resgatar Gepeto e por uma onda violenta, todos são jogados à praia. Pinóquio fica desacordado e Gepeto desesperado. Já em casa, Gepeto chora sinceramente por ter sido salvo por aquele pequeno herói, mas não podendo ajudá-lo. Até que a Fada Azul aparece e Pinóquio além de acordar tornou-se um menino de verdade. Pai e filho dançam e o grilo fica feliz por ter conseguido ajudar de alguma forma.

Vamos agora relacionar as passagens à análise do conto:

1) Que menino não sonha em crescer e se tornar um menino "de verdade"? Pinóquio é esculpido por um "pai", que ainda que habilidoso por ser marceneiro, sozinho não pode dar vida ao boneco. Uma criança para se desenvolver precisa entrar em contato com as imagos paterna e materna, independente do gênero das figuras que assumam tal papel, aqui representados pelo Gepeto e a Fada Azul. Desta forma tem-se o triângulo necessário para o desenvolvimento do Ego de Pinóquio. Seus feitos são todos no sentido de fortalecer este Ego, para ser o menino de verdade que deseja. No desenvolvimento, sem consciência não há o Ego, que tem parte de si identificada por "EU". E o grilo representa este papel, auxiliar a Pinóquio a tomar consciência de si e de seus atos.

2) No entanto, como sabemos, um ego incipiente fica sujeito às manipulações da Sombra, aqui representados por duas raposas. Ainda que tenha se dado mal, e só pode fazê-lo longe do pai, posto que é o seu destino que precisa ser traçado e ele tem que fazer isto sozinho, Pinóquio consegue fugir dali quando consegue se acalmar, aceitar os seus erros diante da Fada e ouvir sua consciência. Mas antes tenta evitar o sofrer, mentindo para a Fada e para si mesmo. A mentira deixa marcas e nele não seria diferente. A Fada como materno positivo, deixa que ele assuma a consequência da sua mentira (nariz cresce, não dá para esconder), mas lhe dá limites e o apoia quando ele aceita e admite suas falhas.

3) Mas ainda assim, não fortalecido o suficiente, Pinóquio rejeita a sua consciência mais uma vez e se deixa levar pelo prazer imediato. Como não comparar isto ao que acontece com o dependente químico, que tem algozes que lhes parecem muito sedutores, mas que os abandonam na hora do sofrimento? A satisfação nunca vem fácil, sem um trabalho duro de ego/consciência. Por ignorar a pouca consciência que tem, torna-se burro, ser vivo, mas que nada tem a ver com a pessoa que queria se tornar inicialmente, posto que só sobrevive por instinto. Novamente quem lhe tira dali é sua consciência.

4) Suas atitudes já arrastaram para muita dor o Gepeto, que acaba por ser engolido por tanto sofrimento e tendo que enfrentar grande sentimento de impotência - sentimentos muito presentes na codependência. Ainda que com ego imaturo, Pinóquio consegue agir para lhes salvar. Mas antes afunda perdidamente no mar - inconsciente - e a consciência, quando o inconsciente a inunda, apenas pode assistir e torcer para o ego estar fortalecido o suficiente e se refazer quando a tormenta passar.

5) O preço: Pinóquio praticamente morre. No entanto, disso nasce um ego fortalecido, que após enfrentar sua jornada, já pode ser um menino de verdade. Quem lhe dá a vida: um feminino, a Fada Azul. Neste momento, o EU passa a existir, independente dos Outros e já pode trilhar seu caminho com responsabilidade.

As figuras de contos invariavelmente precisam lidar com pais incipientes, falhos, que lhes dão pouco ou nenhum limite, tendo que aprender a lidar com a frustração em demasia, mas usando-a como formão para o entalhe de sua personalidade. É claro que o amor ajuda na formação do Ego-Consciência. Mas este mesmo amor, em demasia e sem limites, pode levar um ser à morte psíquica e física.

Infelizmente, cuidar de nossos clientes não é tão rápido como acontece com Pinóquio. Requer muito trabalho, atuar como fada, como Gepeto, como grilo. Não é rápido e bem por isto ao ser conquistada a consciência a mesma pode ser duradoura. Não temos a varinha da fada, mas podemos aprender muito com a atuação dela. Que possamos ensinar nosso clientes a encontrarem em si estes personagens. E que fortalecidos possam exercer a maternidade e a paternidade com responsabilidade, limites e amor.

Que possamos no nosso trabalho trazer ao mundo meninos e meninas. De verdade.

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